terça-feira, 27 de agosto de 2013

À morte com carinho...

A morte me enlouqueceu, ela levou tudo. Ela levou primeiro os meus bens materiais, tudo o que eu tinha na minha casa, dos sofás as janelas, das janelas as portas, minha televisão, as almofadas nas quais eu dormia, e as forcas por debaixo das almofadas, teve coragem até de levar os quadros que ficavam na sala e as poesias póstumas que eu escondia atrás de cada um; com isso ela levou ainda mais, levou minha memória, minhas lembranças de quando era menino, tudo, as faces dos meus parentes, do meu filho a minha vó, da minha vó ao meu bisavô. Depois cansada a morte voltou e levou meus sentimentos, me deixou oco, parada, prostrado, sozinho, olhando pra tudo imóvel, sentia meu cabelo balançar mas não sentia o vento, sentia as lágrimas escorrerem meu rosto mas não sentia a água do mar que batia em minhas pernas, ela levou meu tato, minha audição, meu olfato, meu paladar e minha visão, não cansou, tirando isso levou também minha ingratidão, minha contemplação, minha fé, chegando ao fim, levou as pessoas nas ruas que acenavam e sorriam, levou a rua, os postes, as calçadas, o cimento, os camelôs, quando se cansou de levar tudo, ela me levou; veio numa noite sorrateira e me abraçou pelas costas, eu não tinha reação, por fim era o que eu queria mesmo, e depois me levando foi embora comigo, vagamos o infinito, passamos por quase todos os deuses que na terra acreditavam, descobri a razão do ser humano e depois fui pra um canto escuro ofuscante no qual disseram que me tirariam de lá um dia, mas de lá ouvi moças que diziam que quando a morte aparecia o mundo se entristecia.