terça-feira, 9 de novembro de 2010

Toda manhã ...





A você, que tem um porta-retrato do filho ao lado do computador, com folhas atoladas na segunda gaveta, que não acredita em nada mais para não forçar a esperança a acreditar em você, que entrou neste livro talvez por acidente ou por curiosidade, que mal passou os olhos pela primeira linha e viu que não era com você, peço que fique mais um pouco para descobrir realmente que não é com você. Nada disso é com você; e tudo pode vir a ser. É com você, que nunca está satisfeita com a altura da cadeira, mas também não sabe como girar a manivela, que diminui os passos para escutar o bambu plagiando a chuva, que falo.

A você, que gostaria de ser mais percebida, mais elogiada, mais viva, que ninguém nota o vestido novo, o cabelo cortado, que chega ao trabalho pensando que causará outra impressão, e o espaço vai repetindo o dia anterior.

A você, que cuidou dos irmãos pequenos, que comprava cigarro para o pai e leite para a mãe, que teve que pular a janela para sair com os amigos.

A você que não está satisfeita com o emprego, com os hábitos, com o número das calças, com o guarda-roupa, com o guarda-chuva, que espera as próximas férias como um domingo prolongado, que gostaria de dormir mais e ser penteada pelo vento antes de acordar.


A você, cheia de expectativas, que se diplomou e pensou que tudo estaria resolvido, que se casou e pensou que tudo então estava pronto, que teve um filho e pensou que tudo estava chegando. Não a conheço, muito menos sei o que lhe aconteceu na infância, qual foi o primeiro namorado, a primeira transa, o primeiro choque, o primeiro porre, o primeiro do primeiro amor, o primeiro do último amor; é justamente a você que começo a escrever dentro de sua desistência.

A você, que nunca pensou que o riso também precisa de aquecimento para não se machucar em rugas, que deseja ler de manhã e viver o que se lê de tarde, e que não lê de manhã e nem vive de tarde, e sobra a noite para fazer de noite.


A você, que é uma promessa de cheiro, de chá, que coloca perfume nos pulsos e no pescoço, que tem receio de chorar onde não se chora, de falar o que não se deveria, que se controla e se autocensura para não se entregar.

A você, que passou a vida a disciplinar o desespero, que segura a bolsa perto do quadril, que é suave para olhar de canto.


A você, que está aqui e não se resolve, porque não é aqui que está, mas dentro daquilo que procura. Alguns procuram um endereço; outros, um sentido.

A você, que escuta o sangue e não entende.


A você, que quer explicações para não se contentar com relatórios, para não se apaziguar em brincadeiras, que não usa relógio para não ser infiel à aliança, que repara as laranjas germinando abelhas na hora do almoço.

A você, que não duvida ao assinar o nome, mas troca invariavelmente a data.


A você, que em toda manhã regressa de seu mais fundo e ninguém repara o seu esforço para subir à superfície.

A você, que parece sombra quando a água passa, que parece água quando a sombra senta; a você quero dizer: eu desapareço em você. (F.C)